Estou dormindo, imagino ser o sono dos justos, mas de repente um sonho; nele se abre um livro, folheio e as páginas nada tem escrito, são quase virgens, brancas, alvas, sem mácula, sem borrões. Porque nada tem escrito?
Passei toda a vida sem nada guardar para ser lembrado? O que fiz da vida?
Lembro quando na porta da vila, daquela casa pequena, estava aos meus sete, talvez oito anos, anos vendo um avião passar e nele tinha uma pintura preta ao redor da cauda, que não sabia o que poderia ser; será que estaria levando algum defunto? Sei que morreu alguém importante, o rádio fala disso em todas as estações, basta rodar o dial do rádio que todas as estações falam a mesma coisa: morreu fulano de tal. Devia ser importante pois só se falava nele e, parece que o mundo havia parado.
A brincadeira com meus irmãos, nesta época acho que éramos quatro, ou cinco, já não lembro com a mais clara certeza, mas andávamos descalços, pé no chão, barrigudinhos, cada um tentando fazer suas travessuras porque podíamos brincar à vontade sem medo, correr na rua de terra. Para que calçado se não tínhamos necessidade, tampouco vaidade? Meninos e meninas com seus seis e dez anos nada tinham com que se preocupar a não ser brincar, brincar e brigar uns com os outros. Irmãos são sempre assim, uma hora se beijando em outro momento se estapeando, as veias querendo saltar da pele de tão raivosas que estão, o sangue passando quase na velocidade da luz, o coração batendo a mil querendo saltar do corpo, pura adrenalina.
Naquele dia, ao olhar para o céu depois de ouvir o ronco dos motores do avião que passava deixei de brincar com a velha bola, que era minha amiga mais querida, porque ninguém queria brincar, estava sozinho mesmo tivesse várias pessoas ao meu redor. Estava isolado em meus pensamentos.
Será que era isso que eu tinha visto em meu sonho? Página daquele livro sem marcas ou escrita?
Não moramos lá muito tempo, afinal nosso pai vivia em constante mudança, era caminhoneiro e passava muitos dias, e noites, fora e só nós ficávamos ali a esperar na companhia, é claro, de nossa mãe e de alguns parentes.
Corre menino, sai da rua, vai para a escola estudar! Só quer saber de correr e jogar bola! Era nossa mãe que nos chamava, mas quem queria ter esta responsabilidade? Brincar era bem mais divertido.
A escola, perto da praia, às vezes nos dava raiva porque, ao fazer arte e levar bronca da professora, quase sempre tínhamos que pagar pelo pecado cometido: “Menino, vai ali na praia, pega este balde de areia e traga aqui na sala, correndo viu!” Aquela areia era para colocar no chão de cimento, perto da parede, no canto para ficar o resto da aula ajoelhado na terra pagando os pecados da travessura cometida; e não tinha com quem reclamar!
Era bem simples: ou ajoelhava na areia ou ficava trancado em uma saleta escura que tinha um esqueleto (devia ser para aulas de turmas de crianças maiores, quem sabe ensinavam anatomia); preferia mil vezes ficar de joelho na areia da praia que estava no chão da sala a ficar no escuro sabendo que tinha um esqueleto me olhando!
Como ter página em branco naquele livro da vida?
Tempos depois mudamos para o subúrbio, bem mais próximo do centro do Rio de Janeiro, uma casa bem maior mas que dividíamos com outro parente, um quintal maravilhoso com um pomar imenso com pelo menos uns três tipos de mangueiras, jabuticaba, abil, goiaba vermelha e goiaba branca, mamão, abacateiro, carambola e no vizinho um pé de romã; só não tinha espaço para soltar pipa de tão arborizado era aquele quintal.
Como não tinha espaço no quintal só sobrava a rua, ou o telhado da casa, para empinar pipa e cruzar com os desavisados; quem tinha melhor cerol ganhava a disputa cortando a linha dos outros. O problema era que ao subir no telhado logo tinha telhas quebradas o que fazia chover dentro de casa causando sérios problemas com nossa mãe e com os outros moradores da casa. Mas isto não era problema para nossa mãe que ao chegar do trabalho já solicitava à irmã mais velha o relato do dia; não dava outra resenha: ele subiu no telhado e soltou pipa, ou ele saltou o portão e foi brincar na rua. Só dava tempo de olhar para saber como seria a reprimenda: se estivesse de bom humor, cinco bolos de palmatória, de cinco furos (não sei bem o que era isso, mas não importava muito não, doía do mesmo jeito), nas mãos. Se ela estivesse de mal humor dependendo do lugar em que estivesse podia ser a corda de pular, que ela usava para se exercitar, ou eu podia escolher um galho da goiabeira.
Sabem o que é um galho de goiabeira? Galhinho não espesso, livre de ramos e que verga mas não quebra! Aprendi que podia apanhar mas não devia chorar pois com o tempo parece que ficamos imunes o que de certa forma a deixava mais irritada.
Coisas da vida e de um tempo que hoje não volta mais, mesmo porque hoje é impensável educar na base do castigo físico, o castigo hoje é não poder usar redes sociais!
Ainda não entendi ter páginas em branco naquele livro da vida daquele sonho!
Já lá se vão, quem sabe meus dez ou doze anos, aquela vidinha de ir à escola, brincar, jogar bola na rua, comer frutas no pé da mangueira – o barato não é derrubar a manga para comer mas sim subir nos galhos para lá em cima sentar no galho, recolher a fruta madura e lá mesmo comer saboreando a manga rosa, ou espada, ou qualquer outro tipo. As outras frutas, mesmo a jabuticaba, dava para comer pé no chão por serem árvores menores que dava para pegar a fruta sem ter que subir no caule; quase rasteiras, não davam trabalho para pegar a não ser as goiabas, porque poderiam estar com “bicho da goiaba”, e os abius que já podiam estar comidos pelos passarinhos, que de bobo nada tinham; aqueles abius doces como o mel faziam a festa dos pássaros!
Um belo dia, não satisfeito com pegar as jabuticabas no tronco da jabuticabeira, cheia que estava na safra, resolvi subir nos galhos mais altos, o que não era fácil pois aqueles galhos carregados de frutos ao serem pisados ou esfregados manchavam a pele, mas como explicar isto para um moleque que só quer “molecar”! Já no galho mais alto da jabuticabeira, quem sabe a uns três ou quatro metros de altura, ao pegar algumas frutas dei com a mão em uma casa de marimbondos; só alguém que se acha acima de tudo, um moleque, pode ter esta infeliz ideia. Ao bater na casa de marimbondos, o enxame saiu dando ferroadas e eu só tive tempo de descer tentando matar o maior número possível de marimbondos, já todo ferroado. Na verdade, nem desci a jabuticabeira, me larguei lá de cima, vim caindo tentando agarrar em cada galho e, ao bater no chão, já todo marcado pelo gostoso suco das jabuticabas e pelos ferrões dos marimbondos, caí em cima do braço. Por sorte nada quebrado mas a voz ficou fina e saia quase em sussurro, sem saber se chorava de dor da queda ou das ferroadas dos marimbondos que não queriam parar de me perseguir. Cuidado fui com um remédio caseiro que se tinha, um tal de anil que era usado na lavagem e clareamento das roupas mas, pelo visto, também era um santo remédio; não estancava a dor mas não deixava inflamar as ferroadas daqueles malditos marimbondos! O corpo ficou roxo por tudo: do sumo das jabuticabas e também do azul do anil que era passado em todo o corpo.
Como aquelas páginas estavam em branco naquele livro do sonho?
A vida andou, crescemos, vagabundamos, trabalhamos, estudamos, casamos e tivemos filhos.
Cada um com seu jeito, um mais carinhoso, outro mais danado (olha quem fala!), outro meio blasé, personalidades diferentes para individualizar cada um, cada qual com seu jeito peculiar de ser, com seus medos e virtudes, mas sempre carregando no DNA todas as agruras e vicissitudes que cada um carrega dos progenitores.
Vai trabalhar vagabundo! É a vida nos ensinado e cobrando o pedágio que cada um tem que pagar no seu dia a dia da vida.
Você acorda já correndo, tem que pegar o ônibus cheio, não dá para levantar o pé que alguém vai colocar outro por baixo, precisa sustentar a família, aperto na ida e na volta, e só de vez em quando dá para sentar um pouco e não pode nem tirar uma soneca porque passa do ponto e lá vem o prejuízo de ter que pagar mais uma passagem, quando não se é expulso no ponto final pelo cobrador que logo lhe diz: espertinho! Quer passear sem pagar a passagem?
Todo dia a mesma corrida: ônibus cheio na ida e na volta, um dia cheio de trabalho com erros e acertos normais no dia a dia, aula no colégio/faculdade à noite, mais um ônibus já não tão cheio na volta para casa, mas o cansaço batendo querendo lhe levar para o ponto final da linha você lutando para poder ficar acordado. Como no fim de semana ainda ter que estar com sorriso no rosto para não deixar a meninada sem pai alegre? Mas esta é a vida, feliz por estar vivo, feliz por estar trabalhando, feliz por ter filhos mesmo que tenha tido trabalho com eles – onde já se viu criança não dar trabalho? Muitas histórias para contar para a filharada depois do divertimento seja na praia, no clube, no campo, no piquenique, na viagem de férias; sempre tem algo de muito bom para celebrar.
Mas o livro da vida ainda está com páginas em branco!
@Borba1948
ceborba.blogspot.com